Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago

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"A culpa foi minha, chorava ela, e era verdade, não se podia negar, mas também é certo, se isso lhe serve de consolação, que se antes de cada acto nosso nos puséssemos a prever todas as consequências dele, a pensar nelas a sério [...] não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar." (Pág. 84)

O semáforo fica verde, mas o condutor do veículo não sai do lugar. Os pedestres escutam um desesperado "Estou cego" e, assustados, cercam o carro, tentando entender o que se passa ali. Depois de ter sido guiado até sua casa, o homem consulta um oftalmologista e tem sua repentina cegueira confirmada. Horas depois, aquele que o ajudou, o médico e outras pessoas que estiveram ao seu redor após o ocorrido também apresentaram esse diagnóstico. O número de cegos não parou de aumentar. 

Frente à essa estranha situação, o Ministério de Saúde optou por concentrar todos os cegos e os possíveis contaminados por eles em um antigo manicômio, numa espécie de quarentena, que poderia durar quarenta dias, semanas, meses, até anos. Tudo o que importava para o governo era conter essa inexplicável epidemia. Com o passar do tempo, a quantidade de internados no local só fazia aumentar, enquanto a comida e os suprimentos necessários seguia o rumo contrário. Em meio a toda essa confusão, um único par de olhos ainda mantinha a capacidade de enxergar. 

Ensaio sobre a cegueira introduz o leitor em um cenário que causa desconforto e desespero. Nas primeiras páginas, diversas pessoas ficam cegas e nós conseguimos partilhar a angústia sentida por elas. Esses indivíduos passam a ver somente um clarão, um tipo de mar branco, e não a ideia das trevas e da escuridão em que vivem os deficientes visuais. Desde o início, sabemos que essa é uma cegueira diferente, porém essa noção vai se intensificando ao longo do desenvolvimento da trama e através de uma escrita única que consegue fazer com que o leitor se sinta no mesmo universo que os personagens. 

Assim que os "doentes" e os "contaminados" são alocados no antigo manicômio, todos percebem que a situação ali será bem distinta da prometida pelo governo, a exemplo da entrega de alimentos, que logo deixa de ser suficiente. Com o decorrer dos dias, há um aumento da população internada, visto que, diferentemente do esperado, o isolamento dos cegos não impediu que essa súbita cegueira acometesse o restante da cidade. Desse modo, aos poucos todos os habitantes fazem a temida declaração de que estão cegos e os serviços são interrompidos. Em meio a todo esse conflito, somente uma pessoa permanece a enxergar, acontecimento que põe em xeque a ideia de que "em terra de cegos, quem tem olho é rei". 

Prefiro não citar a personagem que não é acometida pela cegueira, chamada de "mal branco" pelos governantes, pois acredito que possa ser um spoiler, apesar de o leitor fazer a descoberta logo no começo da trama. O fato de não ficar cega faz com que essa pessoa seja obrigada a ver a decadência apresentada pelo restante do grupo. Afinal, ao serem submetidos ao isolamento e às penosas condições de vida, os cegos começam a demonstrar necessidades e comportamentos animais, atitudes que apenas evidenciam o caráter de cada um deles e mostram até que ponto de degradação pode chegar o ser humano. 

Nesse contexto, o "mal branco" é, na verdade, um compilado de diferentes tipos de cegueira. Ao longo do livro, o narrador descreve e comenta acontecimentos que ilustram as metáforas elaboradas por Saramago para explicar a cegueira moral à que busca se referir através desse enredo. Falta de empatia e, principalmente, egoísmo são os males sociais retratados pelo autor por meio de personagens que não são nomeados e cujos nomes não são questionados, evidenciando a indiferença existente entre os companheiros de quarentena, marcados em sua maioria pelo simples desejo de voltar a enxergar, mesmo que sozinhos. 

A escrita do José Saramago é um dos elementos mais encantadores nessa obra. Ao ignorar as regras de pontuação e inserir os diálogos dentro dos parágrafos, sem o uso de travessões e muitas vezes sem identificar os falantes, o autor consegue criar a atmosfera de tensão e confusão presente nessa comunidade. Além disso, a estrutura gera uma leitura frenética, na medida em que o leitor se vê envolvido e vítima daquele universo, junto com os demais. Outro ponto interessante é mencionado mesmo por um dos internados: de que adiante saber nomes, são todos cegos. Não utilizar falas com travessões ou entre aspas é também um motivo para não indicar quem são os interlocutores. 

Assim como a escrita, a narrativa é apaixonante. Ensaio sobre a cegueira é contado por um narrador onisciente que faz críticas mesmo entre os relatos dos personagens, interrompendo-os quando julga necessário. E suas interrupções são excelentes. Algumas, comentários ácidos; outras, descrições carregadas de empatia. Todas, pensamentos que nos fazem refletir e questionar os mais diversos comportamentos e aspectos da natureza humana. É impossível ler esse livro e não parar para pensar em algum momento. Seja sobre a aflição de enxergar e em um dado momento estar cego, seja sobre todos ao seu redor serem cegos e você estar só, sendo forçada a ver por si e pelos outros. Essa obra é envolvente, aflitiva e impactante. 

"Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem." (Pág. 310)



Minha Estante #108
Título: Ensaio sobre a cegueira
Autor (a): José Saramago
Páginas: 312
Editora: Companhia das Letras
Nota: 5/5
Onde comprar: Amazon


Já leram esse ou outro livro do José Saramago? Me contem nos comentários o que acharam!
Beijos e até o próximo post!

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